quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O LADO RUIM DE ALGUMAS COISAS BOAS

Há várias situações relatadas na Bíblia que costumam deixar as pessoas meio perplexas. Isso porque essas situações têm tanto um lado muito bom, que gera ensinamentos maravilhosos, como também um outro lado, ruim, que parece ser triste e desanimador. 

Naturalmente, as pregações e os livros de estudo bíblico costumam olhar somente para o lado bom dessas situações, deixando de comentar o outro lado. Aí quando as pessoas se dão conta desse lado mais escuro das coisas, ficam perplexas e sem orientação sobre o que pensar. Vou dar alguns exemplos para você entender melhor o que acabei de dizer.

Olhando os dois lados 
O melhor exemplo que conheço é o caso do sacrifício de Isaque, filho de Abraão. Deus ordenou a Abraão que sacrificasse o menino, numa prova de fé. E Abraão obedeceu cegamente - levou o filho até um monte, amarrou-o a uma pilha de lenha, para acender um fogo sacrificial, e pegou uma faca para matar o garoto. No último momento, Deus ordenou a Abraão sacrificar uma cabra no lugar de Isaque, poupando a vida do garoto (Gênesis capítulo 22).

O lado positivo dessa história é bem conhecido por todos: a enorme demonstração de fé de Abraão - ele não negou nada a Deus, nem seu próprio filho. Não é por acaso que Abraão ficou conhecido como o "pai da fé". 

O lado negativo fica evidente quando se olha a história do ponto de vista do Isaque. O menino não sabia o que estava acontecendo, pois o pai nada lhe contou, viu-se deitado numa pilha de lenha, como um sacrifício, e o pai puxando uma faca para matá-lo. Certamente ficou aterrorizado - e não é por acaso que, em certo ponto, o autor do Gênesis se refere a Deus como o "terror de Isaque" (capítulo 31, versículo 42). 

Acredito que você já tenha ouvido várias pregações sobre a prova de fé de Abraão, mas duvido muito que já tenho visto qualquer pregação ou texto discutindo como Isaque se sentiu. Eu mesmo, em muitas décadas de frequentar igrejas e ler coisas sobre a Bíblia só lembro de ter visto um comentário nesse sentido.

E a razão é simples: pregadores e escritores cristãos não sabem bem o que fazer com o terror que Isaque sentiu. Gostam de falar da fé de Abraão, porque isso edifica, mas temem que o terror de Isaque assuste as pessoas. 

Outro exemplo interessante é o milagre que Jesus fez ao curar um cego de nascença que encontrou mendigando na porta do Templo de Jerusalém. Naquela época as pessoas acreditavam que uma deficiência física era consequência de pecados cometidos pela própria pessoa ou pelos pais dela. Jesus explicou que, naquele caso, não havia sido cometido pecado algum e tudo tinha acontecido para honra e glória de Deus e curou o homem (João capítulo 9, versículos 1 a 12). 

O lado bom desse relato abrange tanto o milagre de Jesus e como a importante constatação que os pecados dos nossos pais não têm esse tipo de influência nas nossas vidas, assim como nossos pecados não vão arrebentar com a vida dos/as nossos/as filhos/as.

Mas há um lado bem ruim nessa história: o ponto de vista do cego. Parece injusto que ele tenha sofrido tanto para que Jesus pudesse usar seu exemplo para passar uma mensagem importante. Confesso que nunca vi ninguém pregar ou escrever refletindo sobre esse outro lado do milagre de Jesus. 

Um exemplo similar, mas fora da Bíblia, é o caso do desastre de avião onde morreram quase todos os passageiros exceto um, que era cristão fervoroso. E o sobrevivente foi à igreja dar graças a Deus pelo milagre da sua salvação. 

Agora, será que os parentes das pessoas que morreram deveriam então culpar a Deus pelo perda dos seus entes queridos? Afinal, se Deus deve ser louvado por ter salvo aquela pessoa, parece ser que também deveria ser responsabilizado pelo que aconteceu de ruim. Mas esse outro ponto de vista nunca é discutido.

Como já disse, as pessoas cedo ou tarde se dão conta desses outros aspectos de situações que parecem ser maravilhosas, isto é, percebem um lado escuro que se desenvolve em paralelo. E ficam sem saber bem o que pensar.

O que dizer sobre isso tudo?
Não é fácil construir um raciocínio coerente para lidar com esse tipo de questão. Mas acredito que Deus espera isso de nós, pois a Bíblia ensina que as dúvidas precisam ser tratadas. E se não fosse assim, a Bíblia não registraria abertamente histórias com esses dois lados tão marcadamente diferentes.

E há muito a dizer a esse respeito, mas nem todas as respostas são fáceis de aceitar. Começo pelo aspecto mais fácil das respostas, que é o impacto do livre arbítrio na vida das pessoas. 

Frequentemente são os próprios seres humanos que geram problemas para si mesmos. Fazem escolhas erradas e sofrem as suas consequências. E Deus não pode ficar intervindo toda hora para livrar as pessoas dos seus problemas, pois senão o livre arbítrio acabaria - a razão de haver livre arbítrio é outra questão, que não tenho espaço para discutir aqui, mas há postagens neste site que tratam desse tema. 

Deus intervém em alguns casos para mudar ou amenizar as consequências ruins das escolhas feitas e podemos e devemos ser gratos por isso. Mas não podemos culpar Deus pelas consequências ruins das escolhas feitas pelas pessoas. Essa análise esclarece a questão da única pessoa que se salvou do desastre aéreo. O desastre foi causado por falhas humanas - de manutenção, de pilotagem, etc - e Deus não pode ser culpado por elas. Ele interviu para salvar alguém, por motivos que desconhecemos, isso deve ser motivo de gratidão e louvor. Mas isto não quer dizer que Ele é responsável pela morte das demais pessoas.

Para você entender melhor isso, acho que é evidente que a pobreza e as injustiças sociais existem pelas escolhas erradas das pessoas que detém o poder político e econômico. E quando eu escolho ajudar determinada pessoa a melhorar sua vida, por qualquer que seja o motivo, não me torno automaticamente responsável pelo fato das demais pessoas, que não escolhi ajudar, continuarem vivendo na pobreza. 

De certa forma, essa explicação também permite amenizar a análise do caso de Isaque. Abraão deveria ter conversado com seu filho e contado para ele o que Deus tinha lhe pedido. Poderia falar da sua fé e convencer o filho que nada iria acontecer com ele, porque confiava em Deus. Finalmente, poderia ter ensinado o filho a conversar com Deus e certamente algo de bom teria resultado desse contato. Mas Abraão não fez nada disso.

Na verdade, Abraão não era um pai amoroso - basta olhar suas atitudes com Ismael (a quem exilou) e Isaque para perceber isso. E foi ainda pior esposo (vendeu Sara duas vezes e auferiu lucro com isso). Abraão se calou, deixando seu filho totalmente no escuro e gerando consequências ruins na vida do menino. 

É possível ainda que a cegueira de nascença doe homem que foi curado por Jesus tenha a ver com falta de cuidado pré natal, algum problema no parto ou alguma infecção que o bebê tenha adquirido muito cedo (parecendo ter sido cegueira de nascença). Não temos certeza, pois a Bíblia não nos dá informações suficientes. 

Mas se alguma dessas possibilidades ocorreu, o sofrimento daquele homem se deveu à ignorância do povo daquela época, não muito diferente do que aconteceu com milhões de pessoas ao longo da história e nada disso pode ser atribuído a Deus. 

Mas isso não explica outras coisas. Por exemplo, por que Deus tinha que pedir a Abraão uma prova de fé através do sacrifício de seu filho? Essa situação não pode ser explicada pela ação humana. Como também seria o caso se tivesse havido uma interferência direta de Deus no caso da cegueira do homem curado por Jesus.

E aqui entramos no lado difícil dessa discussão: não conseguimos entender todos os planos e as razões de Deus para fazer as coisas de uma forma e não de outra. Portanto, muitas vezes não vamos conseguir entender completamente os acontecimentos. É difícil de aceitar, mas essa é a realidade com a qual precisamos aprender a conviver.

Isso não é fácil de "engolir" porque queremos entender as coisas - até as crianças demonstram isso quando ficam perguntando a razão para as coisas acontecerem para seus pais. Estamos aí no território da fé. 

Não saber a razão para certas coisas e ainda assim aceitá-las, requer confiança irrestrita em Deus, acreditando que Ele sempre busca o melhor para nós. Mesmo quando as aparências parecem indicar o contrário. 

Esse é um teste de fé que, de certa forma, vivemos diariamente. Aí está um dos desafios de ser cristão no mundo em que vivemos. Deus espera fé de nossa parte e, se soubéssemos de tudo, teríamos conhecimento e a fé não seria necessária. Por exemplo, eu não preciso de fé para acreditar que existe a força da gravidade, pois os fatos comprovam isso. 

Fé é justamente manter a confiança mesmo quando não se sabe sobre as coisas. E, conforme a Bíblia nos ensina, sem fé não é possível agradar a Deus (Hebreus capítulo 11, versículo 6). 

Com carinho

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