quinta-feira, 28 de abril de 2016

PERDÃO SIM. MAS E DEPOIS?

A Bíblia ensina que o(a) cristão(ã) deve estar disposto(a) a perdoar muitas vezes - Jesus usou a expressão “setenta vezes sete” para exemplificar isso. Mas como a pessoa deve agir numa situação onde a ofensa é repetida, torna-se uma constante? 

Imaginemos, por exemplo, o caso de um alcoólatra que agride a mulher quando bêbado, infelizmente coisa ainda muito comum, como apontam as pesquisas sobre violência. O comportamento comum desse tipo de homem costuma ser embriagar-se, agredir a mulher, enfrentar a ressaca, voltar a ter consciência das coisas, pedir perdão à mulher e prometer nunca mais fazer de novo, manter-se sóbrio por uns poucos dias e recair, recomeçando o ciclo de violência. 

Os especialistas no tratamento de dependência química são unânimes em aconselhar o afastamento da pessoa doente do convívio da família. Simples assim. Mas quando a esposa é cristã, costuma ser aconselhada na sua igreja a ter paciência, a perdoar e retomar a relação. Será que isso está certo? 

Tempos atrás recebi um email de uma amiga minha, hoje pastora metodista, que relatou a seguinte experiência:

Vou compartilhar uma história vivida pela minha professora de antropologia, especialista nesse tema, inclusive sua tese de doutorado é sobre isso. Durante suas pesquisas de campo, ela estagiou em uma delegacia de defesa da mulher e um dos casos mais tristes que presenciou envolvia uma cristã, agredida várias vezes pelo marido e que por iniciativa própria ou aconselhada por terceiros, acabou perdoando-o e retomando a convivência. E ela estava na delegacia denunciando-o porque a violência aumentou drasticamente. Por não concordar com a cor do esmalte que ela estava usando, ele arrancou todas as unhas de suas mãos...

Acho que quem aconselhou aquela pobre mulher a perdoar o marido, permanecendo à sua mercê, deveria se envergonhar - certamente quem fez isso continuou com todas as suas unhas no devido lugar...


Depois do perdão
Perdoar não é escolha e sim mandamento. Mas isso não significa que a pessoa que sofre a ofensa ou violência deve ser ingênua e ficar desprotegida. 

O problema é que muitos líderes cristãos ensinam ser perdoar igual a esquecer e isso não é verdade. E nem é bíblico. 

Se a mulher agredida for convencida a esquecer o que passou nas mãos do seu agressor, o mais natural seria mesmo ela voltar à situação anterior, expondo-se de novo ao mesmo risco. E isso não faz sentido. É até absurdo.

Perdoar não é esquecer, pelo menos não no sentido de apagar da memória as más experiências vividas, até porque isso seria impossível. Perdoar é desistir de uma posição de “cobrança” e do desejo natural de obter reparação ou mesmo de retribuir o mal recebido. Mas isso não significa que a pessoa prejudicada deva apagar os fatos ruins da sua memória. Pelo contrário, ela precisa aprender com suas experiências, tornar-se mais sábia e até prudente. 

E isso significa, dentre outras coisas, não mais se colocar em risco, como antes. Não mais dar espaço para que o(a) ofensor(a) possa causar o mesmo mal de novo.

Tal ensinamento fica muito claro no caso de José do Egito, um dos maiores exemplos de perdão na Bíblia - para quem não se lembra, ele foi vendido como escravo pelos próprios irmãos enciumados porque o pai dava mais atenção a ele. 

A grandeza de José ao perdoar os irmãos chega a ser difícil de entender. Mas o perdão em si não significou que José retomou a convivência com os irmãos como se nada tivesse acontecido. Ele somente fez isso quando percebeu que os irmãos haviam realmente mudado e não mais representavam ameaça para sua integridade física.

Voltando ao exemplo da mulher agredida pelo marido alcoólatra, ela deve sim perdoá-lo e até ajudá-lo a procurar tratamento clínico, ajudando-o sinceramente de todas as formas a seu alcance. Mas ela deve fazer isso somente depois de separá-lo do convívio da família, para proteger a si mesma e aos familiares. E pode ser até que nunca mais seja possível que o marido venha voltar a conviver com a família normalmente. 

Outra questão importante é a retomada dos sentimentos anteriores. Será que o perdão deveria incluir um esforço, por exemplo, da mulher agredida para voltar a ter os mesmos sentimentos anteriores (amor e afeto) pelo marido, caso ele se regenere de fato? 

É claro que isso pode acontecer, afinal o Espírito Santo pode fazer qualquer coisa. Mas tal restauração de sentimentos não deve ser confundida com o perdão em si. Ela é outra coisa. E não há mandamento nesse sentido.

O mandamento sobre o perdão não exige das pessoas ofendidas esquecer o que sofreram, colocar-se novamente na mesma situação de risco, a reconciliação completa ou mesmo a retomada dos sentimentos anteriores. A Bíblia não não fazer nada disso. 

O perdão não pode se tornar numa armadilha, num mecanismo para provocar a vitimização contínua de quem quer que seja. A Bíblia não ensina e nem pede isso a ninguém.

Com carinho

Nenhum comentário:

Postar um comentário